Às vezes nos preocupamos muito com os aspectos técnicos de nosso ofício. Em TI, então, nem se fala. A busca exigente por certificações e experiência torna tudo muito técnico. Mas acabamos esquecendo de enxergar a vida além do trabalho, ou que há vida também no trabalho. Por isso eu me vejo muitas vezes dividido entre desenvolver minhas capacidades técnicas e desenvolver meu lado humano. Mesmo que se fale muito sobre soft skills, ainda assim considero que muitas vezes soft skills tendem a ser algo tecnicamente desenvolvidas, como um programador que aprende uma linguagem nova.
Não é segredo que sou fã do podcast Autoconsciente, da Regina Geiannetti. Sempre que posso indico e comento para meus colegas de trabalho e amigos mais próximos. É um presente eterno que recebi de alguém muito especial. E no seu episódio 161, intitulado Contentamento, ela cita um filme chamado Dias Perfeitos. Desde que eu acompanhei este episódio fiquei instigado a assistir este filme. Demorou para arrumar um tempo, mas consegui assistir com muita atenção e gostaria de compartilhar minha visão sobre ele.
“Cada dia representa um pequeno nascimento, cada manhã uma nova juventude, cada noite uma nova maturidade e cada sono uma pequena morte”, Schopenhauer. Essa frase resume bem o argumento do filme. Alerta: pode conter spoiler!
Adoro trabalhar com TI. Mas tenho procurado alinhar minhas questões profissionais – além de questões muito particulares – a alguns pensamentos mais filosóficos e por isso quero compartilhar uma visão sobre esse filme.
O protagonista, Hirayama, não é um heroi no sentido mais tradicional. Um humilde limpador de banheiros (definitivamente sem desmerecer quem o faz) não é exatamente o esperado para um filme como este, mas há uma nobreza enorme em como ele conduz seu trabalho. Hirayama se dedica, vai nos detalhes, atuando em algo tão despercebido de atenção, que são os banheiros públicos que ele limpa. Para matar a curiosidade fiz uma pesquisa rápida sobre aqueles banheiros públicos. Eles foram encomendados para as olimpíadas de Tóquio (2020). Enquanto as atividades dele se desenrolam dá pra perceber um quê de hábitos, de atenção aos mínimos detalhes que eu mesmo não conseguiria ver. Ao mesmo tempo ele é discreto e procura não ser reparado e permanecer invisível, quase como se fizesse parte do ambiente. Quando alguém precisa usar os banheiros, Hirayama se afasta e se aquieta e, sem se aborrecer por ter seu trabalho suspenso por alguns instantes, ele ainda contempla o que está ao seu redor, normalmente um jogo de sombras.
Algumas vezes ele se vê olhando para um morador de rua, visivelmente com problemas psicológicos. Parado olhando para aquele morador de rua que faz movimentos parecidos com yoga – certamente com a mente longe, em outro mundo – parece que ele acaba enxergando a si mesmo e sorri. Eles se fitam de longe, ambos ignorados, mas percebi que o foco era transmitir que cada um existe em um mundo diferente. Embora o filme mostre que o protagonista possui uma irmã rica, ele parece criar felicidade na realidade que escolheu.
Outra característica interessante é o foco no minimalismo, mas não o minimalismo que eu enxergo da cultura japonesa. O minimalismo de fontes de entretenimento mais “antigas”, como livros e fitas cassete. E ainda, a alegria em consumir esses meios, com total atenção. O que me chamou a atenção é a forma como podemos nos concentrar em coisas que julgamos significativas em nossas vidas.
Durante todo o filme eu percebi um tom bem espiritual. O respeito aos espaços sagrados, a reverência entre ele e as pessoas e lugares. E também o respeito ao trabalho que ele faz, mais uma vez em nível de detalhes, às plantas que ele cuida.
Seria uma vida ideal? Com hábitos concretos e repetições perfeitas? Talvez a vida dele não seja perfeita. Na verdade, aos olhos da sociedade moderna pode até ser vista como um fracasso. Nega ver seu pai que está doente, não consegue um relacionamento, não consegue salvar outras pessoas doentes. Mas, ele tem sucesso em seu mundo, aquele onde ele é um expectador que admira a vida vendo os outros.
Outro ponto interessante: o filme destaca várias vezes uma cultura ao analógico, mas não transmite a ideia de que ele é melhor ou pior do que nosso atual digital. O contraponto entre os dois mundos acontece em vários momentos, como quando ele se senta ao lado da sobrinha e ambos tiram uma foto da árvore em frente, um com sua máquina de filme (usei muito) e outra com seu iPhone.
Em um mundo repleto de ansiedade achei fantástico como ele retrata uma forma de viver a vida, quando Hirayama está de bicicleta com sua sobrinha em uma ponte. Ela pede para que ele a leve para onde o rio Sumida deságua no oceano. Hirayama diz: “isso é para a próxima vez”. Ela argumenta quanto será a próxima vez e ele reforça: “a próxima vez é a próxima vez”, e completa “agora é agora e a próxima vez é a próxima vez”. E não é isso o que se tenta trabalhar na mente do ansioso? Viver o agora? A importância que se dá a este ensinamento é destacada quando eles passam a repetir várias vezes enquanto tornam a pedalar juntos sobre a ponte.
Por um lado, Hirayama é uma figura heroica. Mas, ao mesmo tempo, parece que lhe falta coragem, além de certa timidez, para participar da vida social. Assim como vemos outras pessoas na rua, ou como quando acabamos de conhecer alguém, não sabemos nada sobre seu passado do personagem. Se ele foi machucado, se sofre, se há episódios de sua vida que ele não consegue esquecer ou perdoar. Não há muito de sentimental no filme, mas há um ar melancólico em como ele se dedica tanto à tarefa fútil de fazer algo que não será reconhecido pelos outros (e aqui me identifico muito em vários aspectos da minha carreira).
Em certo ponto, ao retornar para casa, sua irmã a espera, em um carro de luxo com direito a motorista. O contraste é imenso, em termos de riqueza material. Ela tenta não menosprezá-lo, embora pergunte se realmente ele está trabalhando limpando banheiros. Ela ainda pergunta se ela irá visitar o pai deles, que está mal e não reconhece mais as pessoas. Ele nega a visita. Realmente parece que houve uma ruptura entre o mundo que ele escolheu e o mundo em que a irmã vive. Fiquei pensativo nos inúmeros cenários possíveis de seu passado, que possam justificar sua vida atual, mas o filme não dá pistas de nenhum deles. Mas fiquei surpreso com a atitude que parte dele, de abraçar a sua irmã. E mais ainda de o ver chorando depois disso.
O que eu trago do filme para minha vida? A dedicação à atividade profissional que decidiu seguir. Mesmo que nosso trabalho seja pouco para nós (o que não é o caso do protagonista do filme) que a gente se empenhe em fazê-lo com dedicação, com compromisso, com cuidado aos detalhes, curtindo o processo e procurando ver a beleza de tudo que está em volta, mesmo que não faça parte direta do trabalho. Seja um ambiente agradável ou hostil de se conviver, aplicar o ““agora é agora e a próxima vez é a próxima vez”. É, também, sobre lembrar daquilo que você está fadado a fazer todos os dias, assim como Sísifo, que foi condenado a empurrar uma pedra morro acima repetidamente. Nosso sintoma é aquele fardo que carregamos conosco, que não conseguimos superar. Entretanto, diferentemente de Sísifo, podemos encontrar a felicidade quando nos identificamos com nosso sintoma, quando o abraçamos. A felicidade vem quando aceitamos e integramos nosso sintoma como parte de nós mesmos.
No final do filme, o personagem principal, como um heroi de faroeste, dirige em direção ao pôr do sol. Ao mesmo tempo, reflexões sobre a futilidade da existência passam por sua mente, mas também a alegria e a felicidade infantil que podem surgir com a compreensão de que cada dia é, de fato, um novo começo.
29 de fevereiro de 2024 No cinema | 2h 05min | Comédia, Drama
Direção: Wim Wenders
Roteiro Wim Wenders, Takayuki Takuma
Elenco: Reina Ueda, Koji Yakusho, Tokio Emoto
Título original Perfect Days